segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Vaga de Dor

Acendo a luz numa mesa que fica ao lado da cama de solteiro.
Julgava que estavas lá, mas a mente tem destas coisas,
como se nos saltasse em cima e com um sapato de salto
nos penetra no ouvido e esmaga-nos o equilíbrio.
É uma coisa perigosa, a mente, faz-nos julgar,
julgar que amamos,
que sonhamos
e que, enfim, realizamos tudo o que sonhamos e amamos.

É escusado dizer que nesse lado da cama
só está uma noite mal dormida, pontas de cigarros
e que paira um cheiro a sexo no ar.
Nestes lençóis lavados, marcamos o nosso compasso de espera.
Num quarto de hotel, na casa de um amigo. Nunca na nossa, nunca na tua.

E o sapato de salto continua a enterrar-se carne adentro.

E o segundo penetra, encaixa-se entre a verdade e a mentira.
entre o desejo e o medo
entre o sonho e a realidade.
A cama continua vazia e o medo instala-se
Vou à janela, vejo pessoas.
Vejo caras, caras desfocadas, vazias, esperando a última pincelada de um Deus qualquer.
Esse Deus que não existe, que morreu.
Essa forma de pessoa que temos a tendência de evocar quando tudo desaba, quando a ponta do sapato já está no lugar que tu quiseste que ela estivesse.

Não tem importância, é tudo um sonho.

Acendo a luz numa mesa que fica ao lado da cama de solteiro.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A- Apetece-me escrever?
B- O quê?
A- Não sei, apetece-me?
B- Estás parvo? Escrever? Agora?
A- Não há hora para escrever, é uma coisa que se faz naturalmente!
B- Hum… Não sei.
A- Escrevo o quê?
B- Não sei, é a ti que te apetece escrever.
A- Pois, mas podias ajudar.
B- Podia, mas não quero estragar tudo.
A- Não digas isso, tu ajudas-me!
B- Não quero!
A- Por favor!
B- Não!
A- Vem escrever!
B- Não me apetece.
A- Vá lá. Por mim sim?
B- Deixa-me!
A- Porque é que ficas assim?
B- Não sei, não quero escrever.
A- És bruto!
B- Não me fales em escrever.
A- Está bem, não te falo em escrever.
B- Não, fala-me em escrever. Acho que preciso.
A- Agora não quero.
B- Mais tarde?
A- Talvez.
B- Lê um dos teus poemas.
A- Qual?
B- Não sei. Mas lê, para mim, como se mais nada existisse no mundo. E pensa. Sim! Pensa que estás num campo, e que nesse campo é tudo verde, e que esse campo tem o cheiro do orvalho, aquele que quando acordamos fica na nossa roupa, depois de dormirmos ao relento na montanha, e continua a ler. Estás a ler?
A- Não. Estou a pensar.
B- Em quê?
A- Não sei, acho que num campo. Verde.
B- Gosto da ideia. Cheira a orvalho?
A- Sim. Aquele que quando acordamos fica na nossa roupa, depois de dormirmos ao relento na montanha.
B- Canta-me uma canção.
A- Está bem.
B- Que canção?
A- Não sei.
B- Não quero que tenha letra, apenas uma melodia. E pode ser de embalar.
A- Está a tornar-se difícil.
B- Pensa.
A- Está bem, espera um pouco.
B- Já está?
A- Não.
B- Já está?
A- Não sei.
B- Falta pouco?
A- Penso que já tenho uma ideia.
(canta a canção que embalar)
B- Sim, era essa que estava a pensar.
A- Obrigado.
B- De nada.
A- Posso deitar a cabeça no teu ombro?
B- Sim, está bem.
A- Posso abraçar-te?
B- Penso que não há problema.
A- Obrigado.
B- Também vou dormir um pouco.
A- Até amanhã.

Paris adormece, duas crianças cobertas por dois casacos rotos, extremamente antigos e porcos como o chão das ruas, também adormecem com Paris. Num sono muito mais vasto, num sonho muito mais profundo, num dormir muito mais silencioso. Passam dois indivíduos.

Paris acorda, duas crianças iguais às anteriores, não acordam com Paris. Pois o sono continuará a ser vasto, o sonho será profundo e o dormir silencioso. Está uma folha rabiscada entre as crianças, encontrava-se desenhado uma casa com duas crianças e dois progenitores. A multidão passa.